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Educação inclusiva: compromisso de toda sociedade

17ª edição do Expresso 227 convidou especialistas para conversar sobre a importância da educação inclusiva desde o começo da vida

A construção de um ambiente educacional para todos é um compromisso que o Brasil assumiu há décadas. Porém, já sofremos diversas tentativas de retrocesso. Em setembro de 2020, foi publicado o Decreto 10.502/2020, que abre margem para escolas exigirem avaliações para estudantes com deficiência efetuarem matrícula na escola comum. E ainda  estabelece a implementação de classes especializadas em escolas regulares e de instituições especializadas para pessoas com deficiência. O Decreto foi provisoriamente suspenso em dezembro do mesmo ano, mas ainda falta uma decisão definitiva.

Para conversar sobre os retrocessos impostos por esse decreto e a importância da inclusão desde o começo da vida, aconteceu, no dia 28 de setembro, o “Expresso 227: o que acontece quando a educação é inclusiva?”. O encontro também debateu as dificuldades que diversas famílias enfrentam para matricular crianças com deficiência em escolas regulares. Além de apresentar experiências de implementação de políticas educacionais inclusivas que trabalham para a garantia de direitos.

Participantes

Participaram da conversa: Carolina Videira, idealizadora da Turma do Jiló, pesquisadora de violência escolar, professora e coordenadora de pós-graduação do Instituto Singularidades, mãe do João e da Maria; Margaret Pereira, professora de Educação Especial que atua na sala de recursos para alunos surdos da Escola Municipal Pedro II, em Santos; e Luciana Viegas, autista, professora da rede pública estadual de São Paulo e idealizadora do Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam. A mediação foi feita por Letícia Carvalho, assistente jurídica do Instituto Alana.

Durante o bate-papo, as especialistas também refletiram sobre a inclusão como um  dever do Estado e também de toda sociedade e não uma luta exclusiva das famílias das crianças com deficiência, a partir do filme Um Lugar Para Todo Mundo, dirigido por Olivier Bernier, lançado em setembro, e coproduzido pela produtora estadunidense Rota6 e a produtora líder em entretenimento de impacto na América Latina, Maria Farinha Filmes. 

Carolina

Carolina, que é mãe de João, um menino com deficiências múltiplas, apontou que ao colocá-lo na escola, em 2008, se deparou com as dificuldades da comunidade escolar em entender o conceito da educação inclusiva e como colocá-la em prática. “Nós temos dificuldades na formação de professores no Brasil. Nós não temos a matéria de educação especial em todas as faculdades, e quando ela é oferecida é de maneira teórica”, apontou. Foi então que criou a Turma do Jiló, uma organização que visa garantir a educação inclusiva dentro das escolas públicas.

Margaret

Margaret contou como a inclusão acontece na escola municipal em que trabalha há dez anos, e que é modelo de educação inclusiva há duas décadas. Também apontou que “a escola inclusiva é uma escola que abraça e que aposta na potencialidade de cada criança e não nas suas deficiências”.

Luciana

Luciana falou sobre a interseccionalidade entre as lutas antirracista e anticapacitista e sobre como a educação inclusiva acontece nas periferias. “Quando a gente fala de educação inclusiva, não é sobre pessoas com deficiência. Pensar em educação inclusiva interseccionalizando isso com raça é fundamental. Sem ela a gente não  consegue incluir nem pessoas pretas nas escolas, nem pessoas com deficiência, muito menos pessoas pretas com deficiência”.

Letícia

Concluindo o debate, Letícia citou uma frase de Paulo Freire que sintetiza muitas das reflexões conjuntas. “Gosto de ser gente porque mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais, políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento da nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam”.

Expresso 227 reúne especialistas em diversas áreas para debater temas que impactam as infâncias e adolescências no Brasil e no mundo. Assista a última edição:

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Mônica Kassar: Uma escola inclusiva é um lugar para todo mundo

Conversamos com a pesquisadora Mônica Kassar sobre a história da educação inclusiva no Brasil, os desafios para implementação dessa política pública e os retrocessos trazidos pelo Decreto Presidencial 10.502/2020

Todas as crianças e adolescentes, com e sem deficiência, têm direito à educação de qualidade, à participação, à convivência, à não discriminação, dentre tantas outras coisas.  Para nós, é indiscutível que a inclusão desde o começo da vida é essencial para um presente e um futuro cheios de oportunidades.

Uma sociedade inclusiva, mais justa e pacífica começa com uma escola inclusiva. Essa é uma oportunidade para que o ambiente escolar se abra a novos conhecimentos e a transformar radicalmente suas práticas de ensino e aprendizagem. Um ambiente inclusivo é capaz de melhorar a experiência escolar de todo mundo. 

Política Nacional de Educação Especial

Hoje, muito avançamos para garantir a efetivação do direito à educação inclusiva, mas ainda enfrentamos desafios e, recentemente sofremos tentativas de retrocessos. Em setembro de 2020, o Governo Federal promulgou um Decreto Presidencial que institui a nova “Política Nacional de Educação Especial”. Logo, dentre outras coisas, o ato normativo abre a possibilidade de matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições novamente segregadas dos demais. O decreto está suspenso provisoriamente, mas ainda falta uma decisão definitiva.

“No meu ponto de vista, o principal retrocesso é oferecer escolas especiais como uma opção e, o que é pior, uma opção sustentada pelo olhar de especialistas. Estes, que vão recomendar o ‘melhor’ lugar para o seu filho”, argumenta Mônica. “Se já é difícil hoje, imagine tendo profissionais que digam ‘pais, não é que o seu filho não seja bem-vindo, mas o melhor lugar para ele não é na escola comum, é na escola especial’. Os pais vão perder mais ainda a força”.

Um Lugar Para Todo Mundo

Para refletir sobre as dificuldades das famílias para garantir a efetivação desse direito, estreia essa semana o filme Um Lugar Para Todo Mundo, dirigido por Olivier Bernier e coproduzido pelas produtoras Rota6 e Maria Farinha Filmes. Lançado no dia 20 no GNT, o filme também será exibido na TV Cultura e ficará disponível nas plataformas Globoplay e Videocamp, iTunes, Google Play, Youtube Filmes, Net Now, Vivo Play e Ping Play.

O documentário acompanha a história de Emílio, filho de Olivier, uma criança de 3 anos com síndrome de Down. Mostra a jornada de sua família para garantir, finalmente, uma educação inclusiva nas escolas públicas da cidade de Nova York. No entanto, o filme revela uma realidade de discriminação, desinformação e violação dos direitos das crianças com deficiência.

“Eu acho que a essa altura do campeonato isso é algo inaceitável. Não era para hoje, ainda, termos de falar sobre isso.”, afirma Mônica. Ao Instituto Alana, a pesquisadora  falou sobre a história da educação inclusiva no Brasil. Reafirmou os desafios para implementação dessa política pública no país e os retrocessos trazidos pelo Decreto Presidencial. Confira:

Qual a importância da inclusão desde o começo da vida e da convivência escolar para o desenvolvimento de crianças e adolescentes com e sem deficiência?

Mônica Kassar: Nós devemos pensar que a gente prepara as novas gerações, os filhos, os estudantes, para o mundo, não para você ter o controle sobre eles o resto da vida. Pelo contrário, por mais difícil que o mundo seja, por mais problemas que enfrentemos, de preconceitos, intransigências, situações difíceis, não importa, é nesse mundo real que todos têm de viver, sejam pessoas com ou sem deficiência. E a única possibilidade que eu vislumbro é preparando e instrumentalizando as novas gerações para lidar com esse mundo real.  Em suma, não há outra alternativa e isso se dá desde o início da vida, seja em uma situação de creche, no parquinho… as instituições sociais são fundamentais para todo mundo.

No artigo “Educação especial na perspectiva da educação inclusiva: desafios da implantação de uma política nacional”, você conta que, no Brasil, o atendimento educacional direcionado às pessoas com deficiência foi construído separadamente da educação oferecida à população sem deficiência, criando um sistema paralelo e segregado de ensino. Como isso mudou? Você pode fazer um breve panorama sobre a história da educação inclusiva no nosso país?

M.K.: É importante entender que essa forma paralela de educação não é específica do Brasil. Ela é um modelo que foi criado quando a Educação Especial foi sendo construída como campo de conhecimento e campo de atuação. Porque quando esse campo apareceu e foram acontecendo os primeiros congressos de educação especial no mundo, no começo do século 20, foi se formando a ideia de que era uma população diferente, que precisava ser conhecida e receber uma intervenção especializada. Então, esse foi um dos motivos desta separação entre educação especial e educação comum. Fora, obviamente, que se resgatarmos na história, tanto do Brasil quanto dos outros países, houve um período em que as crianças com deficiência não recebiam atendimento, principalmente educacional.

Aqui, no Brasil, é interessante ver que muitas crianças no final do século 19 e no começo do século 20, consideradas “anormais”, estavam nos chamados hospícios, às vezes misturados com adultos, às vezes em alas específicas para elas. E aí os médicos que as atendiam começaram a se dar conta de que elas tinham que ter educação e que ia fazer diferença na vida dessas crianças. A professora Gilberta Jannuzzi fez a tese de doutorado dela, na década de 80, reconstruindo esse caminho. Ela chama essa fase de fase médico-pedagógica, porque o olhar do médico direcionou, chamou para dentro dos hospícios, o atendimento educacional.

Instituições especializadas

As primeiras instituições especializadas no nosso país seguiram modelos europeus, os primeiros foram ainda no período de Pedro II, que é o atual Instituto Benjamin Constant e o INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos). E as instituições que nós conhecemos agora, APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e Pestalozzi, surgiram no século 20, são mais recentes, surgiram quase 100 anos depois. E elas também passaram a existir porque os pais não encontravam escolas para matricular os filhos com deficiência. 

Então criou-se um lugar para crianças com deficiência e outro lugar para crianças sem deficiência, na lógica de “tirar quem atrapalhava”. Junto com isso, nas escolas públicas, com o movimento do higienismo, laboratórios de médicos e psicólogos faziam análises em crianças, no começo do século 20, para ver quem era “normal” e quem não era. Assim, os “anormais” eram encaminhados para fora da escola, seja para ficar em casa ou para alguma instituição.

Ou seja, escolas e classes especiais vieram misturadas com uma espécie de segregação, para que não se “atrapalhasse” a classe comum. 

Com essa história toda, as escolas especiais foram se fortalecendo. Nós também passamos a ter, a partir do século 20, algumas classes especiais nas escolas públicas. E aí é classe especial não só para deficiência intelectual, existiram para pessoas cegas, para pessoas surdas e aí por diante. Estou mostrando esse caminho porque não temos certeza do que acontecia exatamente no Brasil até metade do século 20. Afinal, a primeira estatística escolar de pessoas com deficiência foi publicada pelo Ministério da Educação apenas entre 1974 e 1975. Nesse levantamento já vemos um número considerável de crianças nas escolas comuns, só que nas classes especiais, um número que cresce muito nas estatísticas posteriores, mesmo antes de existir Política de Educação Inclusiva.

A gente então supõe que as famílias já buscavam as escolas comuns. 

Declaração de Salamanca

Na década de 90, principalmente, existe uma mudança bastante importante ligada por duas questões essenciais. Primeiro, o Brasil assina alguns acordos ligados à escolarização universal da população em idade escolar. Então, quando se fala em escolarizar todo mundo, que naquele período era de 7 a 14 anos, todo mundo significa “todo mundo”, com e sem deficiência. Outro ponto é o movimento internacional de reconhecimento de que as pessoas com deficiência tinham direito a ir para a escola comum. Em 1994, tem uma conferência na cidade de Salamanca, na Espanha, em que é criada a Declaração de Salamanca que sugere que toda criança tem direito de estudar com outras crianças na mesma sala. O encontro dessas questões confluiu para que aumentasse cada vez mais a matrícula de crianças com deficiência em salas regulares.

Educação Inclusiva: direito à diversidade

E eu acho que tem também uma coisa mais recente: em 2003 passou a existir o programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, do Governo Federal. Era um programa de formação de gestores para tentar transformar a educação brasileira em um sistema educacional inclusivo. Isso é interessante porque naquele momento o Brasil acabou tomando um rumo para eleger a escola comum como um lugar para todo mundo. Não foi uma coisa que aconteceu de repente, mas foi sendo construída. Até que em 2008 vem a público o documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, que fortalece e deixa muito clara essa ideia. 

Quando olhamos para a história da educação, a luta pela participação de crianças com deficiência na escola pública não é uma coisa nova. A nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases, em 1961, já dizia que o “excepcional”, como era tratado na época, deveria frequentar o ensino regular, só que ainda dentro das possibilidades, como se achava no período. Isso foi escrito, provavelmente, sob a influência de movimentos internacionais de normalização, de integração, que começava a ser discutido internacionalmente.

E com todos esses avanços, você considera que esse direito tem sido realmente efetivado no Brasil ou ainda enfrentamos desafios?

M.K.: Aqui nós temos muitos desafios. E eu acho importante marcar que os desafios não são só para a educação de pessoas que têm deficiência, são desafios da educação brasileira. Desafios que precisam ser tomados como uma política pública fundamental para o país. Existem muitas críticas, mas essas críticas não podem ser a desculpa para a não matrícula de qualquer aluno ou qualquer mudança de rumo de política.

O que é necessário, no meu ponto de vista, é a melhoria da escola para todo mundo, porque uma boa escola para todo mundo vai ser muito boa também para crianças com deficiência.  

Os problemas da escola são muitos e não estão relacionados especificamente ao atendimento de crianças e adolescentes com deficiência. Da mesma forma, existem problemas de infraestrutura, de formação docente e das políticas educacionais do país que, muitas vezes, não são adequadas e não efetivadas por corte de verbas.

O orçamento destinado não é executado…

M.K.: Exatamente. Ou, às vezes, o orçamento que era previsto também deixa de ser previsto.

Em setembro de 2020, o Governo Federal promulgou um Decreto Presidencial instituindo a nova “Política Nacional de Educação Especial”.  Que, dentre outras coisas, abre a possibilidade de matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições segregadas dos demais. Como você avalia este decreto? 

M.K.: Eu vejo como um retrocesso porque uma política pública, no meu ponto de vista, deve ser algo que direciona o país a um determinado caminho. E como eu falei ali no início, quando formamos crianças, tentamos construir algo que seja sustentável e que seja adequado para o futuro. Então, no meu ponto de vista, o principal retrocesso é oferecer escolas especiais como uma opção. E, o que é pior, uma opção ainda atrelada e sustentada pelo olhar de especialistas, que vão recomendar o “melhor” lugar para o seu filho. Então, eu fico imaginando os pais que, mesmo com o direito à educação inclusiva, muitas vezes pulam de escola para escola procurando vaga para o seu filho, uma escola que realmente aceite matrícula sem maiores complicações.

Se já é difícil hoje, imagine só tendo profissionais que digam “pais, não é que ele não seja bem-vindo, mas o melhor lugar para o seu filho não é na escola comum, é na escola especial”. Os pais vão perder mais ainda a força. 

E isso eu penso estudando teses e dissertações que fazem avaliação dos processos de judicialização da Educação Especial no Brasil. Vemos que grande parte das solicitações na Justiça é pela garantia de vaga na escola comum, com melhores condições ou pedindo professor de apoio. Assim, são poucos os processos pedindo lugar na classe da escola especial. Isso significa que as famílias estão optando pela escola comum, imagine uma lei que enfraquece essa luta. Então, esse para mim é o maior retrocesso. E ainda uma visão enganosa, você coloca o nome de escolha para algo que necessariamente não é.

Leia também: O que fazer se a escola se recusa a matricular crianças com deficiência?

Ter de judicializar a luta para que seu filho tenha acesso à escola regular dá a impressão de estar pedindo que uma exceção, mas é a regra, né? Não é um favor, a educação inclusiva é um direito. 

M.K.: É a regra até então. E a gente espera que continue sendo.

Quando você falou que essa separação na educação de crianças com e sem deficiência não é exclusiva do Brasil, me lembrou muito a história do Emílio, que é contada no documentário Um Lugar Para Todo Mundo, que está sendo lançado essa semana. A família dele tem que lutar e entrar na justiça para tentar garantir que ele estude em uma sala inclusiva.

M.K.: Imagina se esse direito acaba sendo ainda mais minimizado. Isso é muito difícil. Eu acho que a essa altura do campeonato é algo inaceitável. Não era para hoje, ainda, termos de falar sobre isso. Já deveria ter sido resolvido, parece tão óbvio.

De quem é a responsabilidade de garantir a inclusão de crianças e adolescentes em escolas e classes regulares? E o que nós, famílias e sociedade, podemos fazer para assegurar que o direito à educação inclusiva seja efetivado?

M.K.: Bom, como política pública, a responsabilidade é do Estado brasileiro. Independente do governo de plantão, nós temos que ter uma política de Estado de inclusão.

E é responsabilidade da manutenção das instituições manter essa estrutura democrática e manter as linhas dentro das perspectivas dos direitos humanos e da educação para todo mundo.

Sobre como todos nós podemos participar disso, eu acho que uma das questões é que consigamos ficar atentos. Se, no nosso dia a dia, não repetimos práticas, expressões e pensamentos do capacitismo. Simplificando, capacitismo é atribuir a capacidade ou não de uma pessoa a partir da existência ou não de deficiências. Então se a pessoa tem uma deficiência, automaticamente você já faz um pré-julgamento das suas possíveis capacidades ou incapacidades. E nós crescemos em um mundo capacitista e se nos dermos conta disso e de que as instituições, no cotidiano, estão sendo e conseguirmos derrubar, denunciar, já estamos contribuindo para a construção de um outro olhar sobre a deficiência.

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Educação inclusiva: da infância para toda a vida

A inclusão é o único caminho possível para uma educação de qualidade. Efetivar esse direito a crianças e adolescentes com deficiência a partir da perspectiva inclusiva é um compromisso assumido pelo Brasil. E inclui, portanto, todos os níveis do sistema educacional. O enfrentamento a políticas e decretos que recuperam paradigmas segregatórios, representando retrocessos de décadas na garantia de acesso, permanência, participação e aprendizagem na escola, é, então, fator decisivo para assegurar os direitos fundamentais das presentes e futuras gerações de estudantes brasileiros, e garantir uma educação inclusiva.

Audiência pública

Nos dias 23 e 24 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) convocou uma audiência pública para discutir sobre a nova Política Nacional de Educação Especial, proposta pelo Decreto Presidencial 10.502. Publicado em setembro de 2020 pelo governo federal, o ato normativo abre a possibilidade de matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições segregadas dos demais estudantes. A audiência pública aconteceu no âmbito do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6590. Proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), questiona a constitucionalidade do Decreto. Pois afirma que as medidas instituídas discriminam estudantes com deficiência e, desse modo, vão na contramão da educação inclusiva.

Em dezembro de 2020, o Ministro Dias Toffoli suspendeu provisoriamente os efeitos do Decreto, decisão posteriormente reafirmada pelo plenário do STF. Atualmente, portanto, o ato normativo não está em vigor, mas a decisão definitiva ainda está pendente.

Na abertura da audiência pública, Toffoli ressaltou a absoluta prioridade a ser concedida à educação inclusiva e afirmou que o acesso à educação “pavimenta o caminho do ser humano rumo à cidadania, ao desenvolvimento individual, à autonomia, à formação da personalidade, à formação profissional e à concretização de projetos de vida”. Cerca de 60 entidades – entre especialistas em educação inclusiva, organizações da sociedade civil, pesquisadores e órgãos do governo federal – foram habilitadas para expor seus argumentos, como o Instituto Alana e outras organizações que compõem a Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, rede que congrega mais de 50 entidades que atuam pelo direito à educação inclusiva no Brasil.

Prioridade

Em sua fala, o advogado e Diretor de Políticas e Direitos da Criança do Instituto Alana, Pedro Hartung, argumentou que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e seus interesses devem estar sempre em primeiro lugar. “Crianças com deficiência, por sua vez, são prioridade dentro da prioridade. Há omissão dos entes federativos em destinar recursos para implementar todas as práticas de educação inclusiva já previstas em lei dentro das escolas comuns.” O Instituto Alana atua na ADI 6590 como amicus curiae, ou seja, contribui com seus conhecimentos para auxiliar decisões judiciais, e, em outubro, encomendou um parecer jurídico analisando a legalidade do Decreto.

O Brasil é um dos países signatários da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. De tal maneira que possui um arcabouço legal significativo sobre educação inclusiva. O que vai desde a Constituição Federal de 1988 até planos e decretos federais.

Educação inclusiva

O artigo 24 da Convenção tem peso constitucional e determina que os Estados reconheçam o direito das pessoas com deficiência à educação inclusiva. Isso, sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, para que não sejam excluídas do sistema educacional.

Pedro Hartung lembrou que isso já foi objeto de análise no próprio STF na ADI 5357. O relator ministro Edson Fachin destacou que as leis brasileiras de inclusão refletem o compromisso ético de acolhimento e pluralidade democrática adotados pela Constituição Federal. Como o ministro asseverou na ocasião, não se deve privar os estudantes, com e sem deficiência, da construção diária de uma sociedade inclusiva e acolhedora. “Isso porque o direito à educação inclusiva é um encontro, uma porta para vários outros direitos fundamentais. Assim como o direito à convivência comunitária, o direito à não discriminação e muitos outros”, completou Hartung.

Assista a fala completa:

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Alana na 11ª edição da Virada Sustentável em São Paulo

Entre os dias 2 e 22 de setembro, diversas regiões da cidade de São Paulo recebem a 11ª edição da Virada Sustentável. Serão várias atrações culturais que estimulam reflexões sobre sustentabilidade, como mudanças climáticas, consumo consciente e meio ambiente. O Instituto Alana participa do festival este ano com atividades como grafitagem, projeções e contação de histórias. Por meio do Espaço Alana, da Banda Alana, do projeto Urbanizar e do programa Criança e Natureza.

Programação

Dia 20

No dia 20, às 14h, acontece o Arte informa, uma grafitagem para a conscientização da população, em quatro pontos de descarte incorreto de lixo no Jardim Pantanal, bairro na zona leste de São Paulo onde se localiza o Espaço Alana – a ação acontece em parceria com o Natural Consórcio (Parques Jardim Helena e Itaim Biacica) e Corpus.

Dia 21

No dia 21, também às 14h, as ruas do Jardim Pantanal – Erva do Sereno, Cachoeira Itaguassava, Beira Rio, dos Britos, das Crianças, Manima, Tabaranas, Tietê e Freguesia de São Romão – serão percorridas pelo Bike Alana. De bicicleta com uma trilha sonora elaborada pela Banda Alana, a atividade levará informações para a comunidade sobre reciclagem, sustentabilidade e utilização do Ecoponto do Jardim Helena.

Dia 22

No Dia do Rio Tietê, 22/9, a página do Espaço Alana no Facebook publica um vídeo, em parceria com o Natural Consórcio (Parques Jardim Helena e Itaim Biacica), com depoimentos de moradores da Várzea do Tietê sobre a sua relação com o rio. Das 14h às 14h45 acontece, em transmissão online no perfil, a narração de histórias Contos da Terra, com Andi Rubinstein, em que serão contadas três histórias de amor à terra que nos lembram e relembram que o ser humano também é natureza: O Que a Terra está falando, O Sonho de Ismar e A Casa Redonda.

Entre os dias 31 de agosto e 28 de novembro, diversas regiões da capital recebem a Campanha #MinhaMensagem. Onde importantes frases sobre este momento de construção coletiva para o futuro pós-pandemia são projetas. Organizações de diversos setores da sociedade civil, por meio do Criança e Natureza, elaboraram as 100 frases da campanha. O Instituto Alana participa com a frase “Mais crianças na Natureza e mais Natureza para as crianças”. A mensagem busca chamar a atenção para a importância da natureza. Seu papel social determinante para a saúde, o bem-estar e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Saiba mais sobre a programação da campanha aqui.

Confira a programação completa da 11ª edição da Virada Sustentável aqui.

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Alana tem teses aprovadas para Encontro de Defensores de SP

Durante o Pré-Encontro de Defensores e Defensoras, o Instituto Alana teve três teses, na área da infância e juventude e na área cível, aprovadas para serem apresentadas no Encontro Anual de Defensores e Defensoras do Estado de São Paulo. 

Anualmente, a Defensoria Pública realiza 5 pré-encontros temáticos, divididos por áreas de atuação. As áreas são Cível, Criminal,  Execução Criminal, Família e Infância e Juventude. Em que defensores e defensoras debatem e avaliam teses que funcionarão como parâmetros mínimos de atuação de toda a instituição. Estes aprovam três teses e, posteriormente,  no encontro anual, toda a instituição realiza a votação.

A sociedade civil não participava dos encontros desde 2008 e, este ano, após processo de mobilização das instituições envolvendo ativamente o Conselho Consultivo do órgão, por fim, 16 organizações de direitos humanos e movimentos sociais enviaram 32 teses. Na área da infância e juventude, a sociedade civil teve mais uma tese aprovada, formulada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Desse modo, a participação nestes encontros é fundamental para a construção de um diálogo entre a Defensoria Pública e a sociedade civil.

A primeira tese do Instituto Alana aprovada no pré-encontro trata da possibilidade da nomeação do defensor público como “Defensor da Criança”. Especialmente em casos de acolhimento institucional/familiar, garantindo o melhor interesse e a participação efetiva da criança e do adolescentes nos processos. 

A segunda, fala sobre a necessidade de realização de uma audiência de estudo de diagnóstico inicial nos processos de suspensão ou destituição do poder familiar. Isso, antes da separação da criança ou adolescente da família, ou imediatamente após, nos casos de acolhimento emergencial. Com o objetivo de, assim, prevenir possíveis reproduções de violências históricas em razão da separação entre criança e família. Especialmente diante da violação do direito à convivência familiar e comunitária.

A terceira, trata que a não se pode efetivar a ordem em caso de desrespeito do protocolo de proteção de direitos da criança e do adolescente. Caso haja crianças ou adolescentes residentes em imóveis ameaçados de despejo ou remoção.

“São temas de máxima importância para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes, por isso temos a expectativa de que sejam aprovadas no Encontro Anual”.

Apontou Isabella Henriques, Diretora Executiva do Instituto Alana e Conselheira Consultiva da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo.

O Encontro Anual de Defensores e Defensoras do Estado de São Paulo acontecerá em novembro.

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Protagonismo estudantil: potência para gerar mudanças

Conversamos com a professora Maria de Lourdes Ramos sobre a potência do protagonismo de crianças e adolescentes, a importância do apoio da comunidade escolar e desafios durante a pandemia

É que eu sou da geração que não aceita:
não pode, não vale, não tem como, não dá
Eu sou da geração de acreditar
Então, faz um favor: 
deixa a menina guiar
deixa o menino estudar, 
deixa o menino sonhar, 
deixa a menina criar
É que eu sou do Brasil
Já ouviu falar?

Lucas Penteado

Empresto as palavras do poeta para falar sobre crianças e adolescentes que não hesitam em colocar a mão na massa. Elas empenham energia e esforços para transformar suas realidades, comunidades e o mundo em um lugar melhor para todos. E é claro que nós, famílias, sociedade e Estado, devemos pavimentar esse caminho, potencializando esse protagonismo e garantindo que suas vozes sejam ouvidas e amplificadas.

Foto mostra professora Lourdes Ramos sorrindo usando um vestido preto com estampas azuis
Professora Maria de Lourdes Ramos. Foto: arquivo pessoal

E a comunidade escolar também tem um papel fundamental nessa empreitada de garantir o protagonismo de crianças e adolescentes. Como aponta Maria de Lourdes Ramos, professora no Colégio Estadual Deputado Luís Eduardo Magalhães, em Alagoinhas (BA): “quando existe diálogo entre escola e comunidade, ela se torna mais forte, uma referência para a comunidade e o estudante também se torna mais forte, autônomo, livre, criativo e inovador”.

A professora Lourdes criou com seus alunos, em 2016, o “Da Escola para o Mundo”, premiado no Desafio Criativos da Escola em 2017. O projeto busca ações para a valorização da autoestima dos estudantes e da comunidade. Tudo por meio de encontros com oficinas de orientação profissional, artesanato, violino, teatro e dança.

Ao Alana, falou sobre a potência do protagonismo de crianças e adolescentes para transformar realidades e problemas sociais. A importância do apoio da comunidade escolar, desafios durante a pandemia e também contou mais sobre os bastidores do projeto “Da Escola para o Mundo”.

Confira:

Você pode falar um pouco sobre a potência do protagonismo de crianças e adolescentes para transformar realidades, problemas sociais e gerar mudanças?

Maria de Lourdes Ramos: Eu acredito muito na força do jovem e vejo o quanto aprendem rápido e facilmente. Eles enxergam além do que enxergamos e, de uma forma mais simples, encontram as respostas que levaríamos um tempo para encontrar. Não vão buscar onde está a política, a questão econômica, mas vão na raiz do problema. Eu vejo o quanto esses jovens e adolescentes conseguem, dentro das suas realidades, encontrar respostas e perceber, do modo deles, todo esse contexto em que estão inseridos.

Conseguem enxergar o Brasil com essa enorme desigualdade social, entender porque eles são da periferia e estão na periferia e quais são as dificuldades que vão encontrar para se autoafirmarem diante desse contexto de desigualdade. Essas crianças e adolescentes aprendem a resolver, a amar, a tomar decisões e nos cabe, como adultos ou instituições, mostrar para eles essas possibilidades. 

Qual a importância da comunidade escolar para garantir esse protagonismo?

M.L.R: Eu vou falar um pouco da minha formação como educadora. Afinal, desde os 18 anos eu já tinha certeza que eu queria ser professora.

E eu acredito que quando existe diálogo entre escola e comunidade, ela se torna mais forte, uma referência para a comunidade e o estudante também se torna mais forte, autônomo, livre, criativo e inovador.

Porque a escola permite que os estudantes levem suas realidades para lá e consigam encaminhar soluções e estratégias para lidar com todos os seus contextos. Então eu percebo como essa escola pode e deve exercer esse papel social de se aproximar das famílias, de orientar. Sua função não é reproduzir conteúdos distantes da realidade do estudante. Por exemplo, vamos ter uma aula de história, vamos falar da Europa, mas não do Brasil; vamos falar do Sul e não falamos do Nordeste.

Então eu tive uma prática com os alunos, quando eles já estavam no ensino médio, eram da educação profissional, e disse “quais são as oportunidades que a gente tem de emprego aqui na Bahia?” e eles diziam que aqui não tinha muita coisa, que tinha mais coisa em São Paulo, que iam melhorar de vida se fossem para lá. E eu falei “vamos estudar um pouco? aceitam o desafio?”. E eles ficaram surpresos com o que descobriram sobre a Bahia. Muitos não sabiam que a Bahia tem 417 municípios e como esses municípios têm possibilidades e oportunidades para jovens, tanto de emprego como de acesso à educação. E aí partimos do lugar deles, de Alagoinhas, a 108 km de Salvador.

Eu vejo o quanto é importante para esses meninos terem uma escola que possibilite eles se enxergarem no contexto, construírem as suas histórias e gostarem mais do lugar onde eles estão.

Essa questão da autoestima dá força para eles decretarem “eu sou capaz”, eu posso, eu chego lá e eu vou mudar a minha realidade e da minha comunidade a partir do contexto da escola”. De fato, eu acredito nessa escola libertária, democrática, que dialoga constantemente com comunidades. Essa escola que traz a realidade para dentro e que trabalha seus conteúdos a partir desse olhar.

Como você apontou, o papel da escola vai muito além de só reproduzir conteúdos. Especialmente para crianças e adolescentes, tem o papel de rede apoio e  proteção contra diversos tipos de violações. Como esses papéis que a escola desempenha ficaram durante a pandemia de coronavirus?

M.L.R: Falando de uma forma geral, sentimos diversas dificuldades no Brasil e, especialmente aqui na Bahia, para trabalhar nesse período de crise humanitária, que é também política e crise econômica. Oficialmente, pelo governo do estado da Bahia, os 417 municípios não tiveram aula. Desse modo, não havia contato entre professores e estudantes e isso me inquietou demais. As aulas foram suspensas em maio e, em abril, eu comecei a assistir muitas lives, e uma dessas foi de um grupo de São Paulo que tinha conseguido desenvolver o chamado WhatsApp inteligente, que tinha um robô que fazia chamada, resumos das aulas. Eu liguei para essas pessoas, pedi apoio e informação. Logo, chamei alguns colegas e consegui 10 professores que toparam dar aulas para esses meninos. Fizemos um planejamento, aqui em Alagoinhas, e alguns outros professores daqui também tomaram iniciativas isoladas e não foram reconhecidos pelo governo no Estado.

Foi a maior sacada essa iniciativa porque os estudantes também estavam com tantos medos e incertezas quanto nós diante dessa crise que pegou em cheio muito mais essas camadas desfavorecidas, quem vive em periferias, quem não tem emprego certo, quem vivia de bicos.

Essas pessoas foram atingidas de uma forma mais profunda e a maioria delas eram nossos estudantes ou os pais deles. Trabalhamos assim de abril até novembro sem nenhuma autorização do governo. O Estado poderia ter investido na TV aberta, montado um grupo de professores de fazer blocos temáticos de conteúdos, que ajudaria os estudantes a passar por esse momento difícil.

Porque a escola também é um lugar de proteção contra todos os tipos de violência, e a violência urbana aqui é muito forte, e acho que em todos os lugares do Brasil.

Agora, em 2021, o estado da Bahia criou as aulas remotas e aí veio outro problema: aulas remotas sem uma estrutura para os professores, sem o aluno ter um celular que pudesse abrir um documento, casas que não tinham o que comer. Diante de todas as dificuldades, nós trabalhamos como nunca para preparar atividades online e ainda tivemos que aprender muito. Quando se fala da comunicação e da informação no Brasil, é notória a distância que existe entre o que se propaga e a realidade. Ao passo que encontramos professores que sequer sabiam usar o seu celular, quanto mais utilizar algum outro aplicativo ou plataforma. Outra questão é que é preciso ter internet: cadê a internet livre para os estudantes? Por que eles não propuseram e não investiram recursos para internet livre? 

É possível incentivar e efetivar o protagonismo de crianças e adolescentes diante desse contexto e durante a crise sanitária provocada pelo coronavírus?

M.L.R: Sim, aí é que vem a questão de como uma escola vai redirecionar sua prática educativa. Nessa em que eu ainda atuo, temos conversado muito sobre as possibilidades de “diálogos” entre os componentes curriculares. Esse “diálogo” significa trazer para os estudantes aquilo que é de seu interesse. Muitas vezes a escola se torna “chata” porque trabalha coisas que parecem que não tem muita relação com eles.

Se eu trago coisas que são da realidade deles, os estudantes começam a se movimentar.

Eu me lembro de uma atividade, por exemplo, de um projeto experimental que eu leciono, com a turma de educação profissional, falando sobre os efeitos da pandemia e eles começaram a falar sobre profissionais que não pararam, falaram médicos, enfermeiras e uma menina falou “Garis, professora. A minha mãe é gari”. Então nós fizemos uma exposição de forma online sobre isso. Quando o aluno dá a ideia, ele se sente corresponsável por aquela criação e vai buscar soluções. Então eles fizeram enquetes no Instagram, as pessoas responderam, teve uma mãe gari que mandou um depoimento por áudio. Também tivemos um momento na escola, todo online, em que fizemos esse debate e os estudantes fizeram uma homenagem no dia do gari.

Eles construíram isso e, percebemos que, mesmo de forma online, dá para fomentar o protagonismo a partir do momento que você traz desafios que tenham relação direta com a realidade desses estudantes.

Eles pensam rápido e cada um vai contribuindo e construindo uma teia de soluções que muitas vezes para os órgãos públicos parece algo tão complexo.

E cai naquela problemática que para garantir o protagonismo desses estudantes durante a pandemia também é preciso garantir que eles tenham acesso à internet, né? 

M.L.R: Sim, com certeza.

Entre 2016 e 2017, junto dos seus alunos, você criou o projeto “Da Escola para o Mundo”, voltado a construir ações voltadas à valorização da autoestima dos jovens e da comunidade, que foi premiado pelo Criativos da Escola em 2017. Você pode falar um pouco mais sobre esse projeto?

M.L.R: Esse projeto, na verdade, nós desenvolvemos até 2019. Fomos premiados em 2017 e as meninas que saíram, que eram as idealizadoras do projeto e terminaram o ensino médio, passaram o projeto para outro grupo assumir. E esse grupo ficou até 2019 e só não continuamos por conta da pandemia.

O nome do projeto “Da Escola para o Mundo” já diz a ideia: fazer com que os nossos estudantes tivessem autoestima, acreditassem no potencial deles e começassem a visualizar possibilidades para suas vidas fora dos muros da escola.

Tudo aconteceu em uma aula antes do dia do estudante, eles começaram a pensar o que podíamos fazer nessa data, queriam fazer alguma coisa prática. Decidiram fazer um questionário para ver o que os estudantes gostariam de ter na escola e também colocaram algumas perguntas mais pessoais. Quando nós fomos fazer a tabulação dos dados, elas disseram “professora, a maioria está apontando que não têm características boas, que não tem valor, parece que eles não gostam muito deles mesmos” e perguntaram o que poderíamos fazer com esse resultados. Então, nós começamos a planejar um projeto que pudesse dar oportunidade a esses jovens de falar dos seus medos, além dos seus anseios e buscar o que eles tivessem de melhor, produzir materiais em que eles pudessem ser protagonistas da sua própria história.

Tudo aconteceu em uma aula antes do dia do estudante, eles começaram a pensar o que podíamos fazer nessa data, queriam fazer alguma coisa prática. Decidiram fazer um questionário para ver o que os estudantes gostariam de ter na escola e também colocaram algumas perguntas mais pessoais.

Foto mostra vários alunos reunidos em sala de aula
Estudantes participando do projeto “Da Escola para o Mundo

Quando nós fomos fazer a tabulação dos dados, elas disseram “professora, a maioria está apontando que não têm características boas, que não tem valor, parece que eles não gostam muito deles mesmos” e perguntaram o que poderíamos fazer com esse resultados. Então nós começamos a planejar um projeto que pudesse dar oportunidade a esses jovens de falar dos seus medos, seus anseios e buscar o que eles tivessem de melhor, produzir materiais em que eles pudessem ser protagonistas da sua própria história. Aí criamos o projeto e começamos a oferecer atividades na escola nos finais de semana.

Conseguimos parcerias com a Secretaria de Assistência Social do município, assistentes sociais, terapeutas, músicos, e parcerias para lanches. Também começamos um trabalho de valorização da autoestima, conversamos com alunos que não gostavam dos cabelos crespos, não gostavam de ser negros, que não gostavam de ser do Barreiro – a escola está em um dos bairros violentos da cidade. Esse projeto trouxe uma outra cara para a escola, porque quando a comunidade a enxerga como uma parceira, um espaço que está ali para ajudar o filho, eles participam de tudo o que é oferecido. Fizemos muito movimento na rua.

Qual a importância de projetos como o Criativos da Escola para incentivar o protagonismo estudantil?

M.L.R:  Eu vejo que é preciso que as escolas aprendam a trabalhar com esta prática do elogio. Não é um elogio pelo elogio, mas pelo fazer, pela concretude de uma ideia e de um ideal. Esse elogio é uma das coisas mais importantes que a escola pode fazer, para que os projetos saiam do papel e possibilita o protagonismo desses estudantes para mudar a história da vida deles e da comunidade. Quando um aluno faz um projeto para uma situação real, realmente está focando em um problema que quer encontrar uma solução. Por isso é importante que as escolas invistam em projetos educativos, que possam trazer modificações da realidade.

As premiações dão para os estudantes a possibilidade de perceberem o quanto são essenciais e estão ajudando a resolver coisas importantes para o mundo. Ademais, não foi ideia minha participar do Desafio Criativos da Escola, foi de uma das estudantes, elas são muito antenadas em tudo e aprendem muito rápido.  Eu sou tiete do Criativos, vejo como ajudam esses meninos a pensar em suas práticas, a pensar suas realidades e a criarem soluções. E isso também possibilita que os estudantes mostrem seus talentos. Tem muito jovem talentoso e criativo nesse Brasil e que daria um banho na gente encontrando soluções rápidas para problemas que estão se esticando a séculos nesse país.

Nos cabe, enquanto educadores e instituições, possibilitar que crianças e adolescentes se sintam sempre corresponsáveis por tudo que está ao seu redor, no seu contexto, na sociedade. E como fazemos isso? Incentivando o protagonismo juvenil.

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Representatividade negra no currículo escolar

Terceiro encontro da edição “No chão da escola: educação antirracista” convidou especialistas para conversar sobre recriar a escola sob perspectivas afro-brasileiras e a Representatividade negra no currículo escolar.

Como fortalecer a representatividade negra na construção de um currículo antirracista e como recriar as escolas sob perspectivas afrobrasileiras? Essas questões pautaram o último encontro da jornada formativa “No Chão da Escola: educação antirracista”, que aconteceu no dia 29 de julho, apresentado por Raquel Franzim, Diretora de Educação e Cultura e Cultura da Infância do Instituto Alana.

O encontro contou com duas mesas:

Representatividade e protagonismo negro no currículo

Da primeira mesa, participaram: Carolina Adesewa, professora, escritora e idealizadora do Afroinfância; e Graça Gonçalves, doutora em educação e pesquisadora em educação antirracista. A mediação foi feita por Suelaine Carneiro, coordenadora do programa de educação do Geledés – Instituto da Mulher Negra.

Iniciando a conversa, Caroline apontou que existem diversas contribuições que os povos africanos deixaram para nós que as crianças precisam ter acesso. Bem como, afirmou que a falta desse conhecimento dentro do currículo gera uma série de questões e conflitos na subjetividade da criança. “As crianças negras crescem embalando bonecas brancas. Isso gera uma série de tensões porque a criança pensa ‘se é esta boneca que está nas prateleiras das lojas, no cantinho da brincadeira e nas propagandas, é porque esse ideal estético é o padrão e o mais bonito”, explicou.

Graça citou a importância da  Lei 10.639, de 2003, que inclui a história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares. “A lei fala do reconhecimento e igual valorização das raízes africanas na nação brasileira. Desse modo, o ensino dessas temáticas implica na compreensão das diferentes formas de organização, raciocínio e expressão das raízes africanas. Também implica no diálogo entre diferentes sistemas simbólicos, interações e interpretações entre estudantes, servidores, professores e integrantes da comunidade, respeitando valores, raciocínios e visões de mundo”, apontou.

Recriar a escola sob perspectivas afro-brasileiras

Aa segunda mesa contou com a participação de Iara Viana, mestre e doutoranda em Estudos do Lazer, Cultura e Educação; e Luiz Rufino, pós-doutor em relações étnico-raciais e doutor em educação. A mediação foi feita por Carlos Machado, professor, historiador e colunista da RAÇA Brasil. 

Para Luiz, a educação é uma manifestação da vida e, no Brasil, não há uma experiência equânime para que a vida se expresse. “São necessárias ações afirmativas, de reparação, em todos os âmbitos, porque o mundo em que nós estamos foi constituído na desigualdade. É fundamental a redistribuição das oportunidades para que se possa experienciar a vida em sua plenitude”, apontou.

Iara explicou que para a transformação da escola numa perspectiva afro-brasileira é preciso colocar nas escolas e nos livros didáticos a discussão contada pela população negra. “Quando a gente diz que a educação é transformadora, precisa ser em um formato estratégico. Aumentar o número de negros e negras que tenham a segurança de se declararem negros e negras é um papel da escola. E aí sim a escola estaria trabalhando em uma perspectiva afro-brasileira”, disse.

Confira as edições anteriores do No Chão da Escola, sobre educação no contexto da pandemia e sobre cinema e educação na promoção de direitos humanos. Assista ao terceiro encontro da jornada formativa no “No Chão da Escola: educação antirracista” aqui: 

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Escola, relações étnico-raciais e antirracismo

Segundo encontro da edição “No chão da escola: educação antirracista” convidou especialistas para conversar sobre educação para relações étnico-raciais e branquitude e racismo.

No dia 28 de julho, aconteceu o segundo encontro do “No Chão da Escola: educação antirracista”. A jornada formativa, apresentada por Raquel Franzim, Diretora de Educação e Cultura e Cultura da Infância do Instituto Alana, tem o objetivo de formar profissionais da educação, inspirar e subsidiar a comunidade escolar frente aos desafios na garantia do direito à educação para todos e, nesta edição, aborda a educação antirracista.

Primeira mesa

Participaram da primeira mesa, a roda de conversa “Educação para relações étnico-raciais”: Marta Avancini, jornalista e editora pública do Jeduca; Luana Tolentino, doutoranda em educação e colunista da Carta Capital; Raimundo Pereira, vice-presidente da seccional Undime/Bahia; e Angela Danneman, superintendente do Itaú Social; e a entrevistada Petronilha Beatriz Gonçalves, relatora do parecer sobre educação das relações étnico-raciais. A mediação foi feita por Raquel de Paula, coordenadora do Portal Lunetas, do Instituto Alana.

Para Petronilha, a educação para as relações étnico-raciais enfrenta, há muitos séculos, desafios para valorizar igualmente a todos que fazem parte da nação brasileira. “Ser diferente é um direito. A minha diferença não pode prejudicar o outro, tem que ser um modo de enriquecer a convivência. Isso, num sentido de valorizar os modos diferentes de ser, viver e pensar, todos como igualmente valiosos”, apontou.

Segunda mesa

A segunda mesa, “Branquitude e racismo: o papel das escolas”, contou com a participação de Eugênio Lima, pai e integrante da Comissão Antirracista do Colégio Equipe; e Ana Bergamin, membro do Comitê da Diversidade Racial da Escola Veracruz; e a mediação de Luciana Alves, consultora para relações raciais e educação do CEERT.

“Há um privilégio branco no Brasil que precisamos desconstruir. Onde nós falamos sobre privilégio, falamos da ausência de direitos. Assim como a abolição é fruto de um movimento popular de luta, na luta contra o combate ao racismo, o combate ao privilégio é parte importante. A gente precisa admitir o privilégio e ouvir as vozes silenciadas até hoje”, alertou Ana.

Eugênio apontou que não há justificativa para que um país com 54% da sua população negra afrodescendente tenha tão pouca representatividade nos postos de decisão. “É importante que a ideia de que pessoas negras podem ocupar todos os espaços seja naturalizada. A gente faz isso em benefício das crianças negras, não para criar uma pretensa diversidade para aquietar o sentimento de culpa da branquitude, mas para uma mudança estrutural. É uma reparação histórica”, disse.

Confira as edições anteriores do No Chão da Escola, sobre educação no contexto da pandemia e sobre cinema e educação na promoção de direitos humanos. Assista ao segundo encontro da jornada formativa no “No Chão da Escola: educação antirracista” aqui:

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O corpo negro e o papel da escola na educação antirracista

Primeiro encontro da edição “No chão da escola: educação antirracista” convidou especialistas para conversar sobre escola, antirracismo e democracia e os impactos do racismo na subjetividade

As questões raciais são centrais no nosso país. Elas não devem ser debatidas apenas em datas e disciplinas específicas, ao contrário, precisam habitar os diálogos cotidianos. Essas questões devem pautar toda sociedade, considerando, também, que o racismo se desenvolve de maneiras específicas dentro das diferentes instituições. E qual o papel da escola nessa conversa?

Vivemos em uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo racismo estrutural. Precisamos buscar maneiras de combater o racismo e honrar a diversidade dentro das instituições de ensino. Para conversar sobre o tema, acontece, entre os dias 27, 28 e 29 de julho, a jornada formativa no “No Chão da Escola: educação antirracista”.

Como a escola pode contribuir para a ruptura do racismo estrutural e o avanço da democracia

Ontem, 27, aconteceu o primeiro encontro dessa edição, apresentado por Raquel Franzim, Diretora de Educação e Cultura e Cultura da Infância do Instituto Alana. A primeira mesa foi “Escola, antirracismo e democracia: como a escola pode contribuir para a ruptura do racismo estrutural e o avanço da democracia?”. Participaram: Nilma Lino Gomes, ex-ministra do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos; e Alexsandro Santos, presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo.

Iniciando o debate, Alexsandro apontou a questão da justiça racial no Brasil a partir do recorte da importância da escola como instituição que participa da construção do país. “As questões raciais precisam vir à tona, porque senão nós continuamos trabalhando em uma perspectiva de invisibilizar o racismo.  Quando os adultos não discutem os conflitos raciais que estão instalados ali, quem paga a conta são as crianças”, alertou.

Nilma explicou que quanto mais frágil a democracia fica, maior a possibilidade de fenômenos perversos como: racismo, machismo,  LGBTfobia, fascismo. “Fortalecer a escola é importante para fortalecer a democracia. E fortalecendo a democracia e a escola, nós também podemos fortalecer práticas antirracistas no nosso país”, apontou.

A socióloga, mestre em educação e coordenadora da área de educação do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Suelaine Carneiro; e a antropóloga e consultora do Geledés, Jaqueline Santos, também apresentaram a pesquisa “Direito à educação de meninas negras em tempos de pandemia”, do Instituto. “As meninas negras são as primeiras vítimas do trabalho infantil doméstico, da exploração infantil, da gravidez na adolescência, do casamento infantil, violações que se agravam durante a pandemia”, explicou Suelaine.

Racismo e seus impactos e seus impactos na subjetividade

A segunda mesa foi “O corpo negro na escola: racismo e seus impactos e seus impactos na subjetividade”. Participaram: Júlio Cezar de Andrade, especialista em direito da criança e do adolescente; e Maria Lúcia da Silva, integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude. A mediação foi feita por Mighian Danae, doutora em educação e pesquisadora do GRUPEAFRO.

“O racismo é uma experiência que nos impede de viver uma completude com o nosso corpo em espaços como a escola. O racismo nos violenta fisicamente e, muitas vezes, simbolicamente, em nossas relações com o mundo e com nosso corpo”, apontou Mighian.

Para Maria Lúcia, pensar os efeitos psíquicos do racismo é pensar que o racismo é um elemento estruturador da sociedade, das formas de relação, mas também das percepções dos afetos e da forma de pensar o mundo. “É preciso que a comunidade escolar compreenda como o racismo se materializa na escola. Para, assim, construir os mecanismo de enfrentamento e assegurar que as crianças negras tenham um lugar em que se sintam seguras. Mais ainda, se sintam dignas, valorizadas, confortáveis e pertencentes aquele ambiente, tanto quanto a criança branca”, disse.

Julio Cezar explicou que o debate do enfrentamento ao racismo não deve ser só em datas pontuais. É preciso universalizar em todo o contexto escolar, e estar presente nas práticas cotidianas. “O racismo traz dores na subjetividade porque fere a capacidade de autoestima, de pensar o projeto de vida e fere, todos os dias, os corpos de crianças e adolescentes negros”, apontou.

Confira as edições anteriores do No Chão da Escola, sobre educação no contexto da pandemia e sobre cinema e educação na promoção de direitos humanos. Assista ao primeiro encontro da jornada formativa no “No Chão da Escola: educação antirracista” aqui:

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Como garantir direitos enquanto a aldeia padece?

Confira nossa conversa com as pesquisadoras Márcia Buss-Simão e Juliana Schumacker Lessa sobre direitos de crianças e adolescentes na pandemia, a importância da imunização da população e os 31 anos do ECA

Dizem que é preciso uma aldeia para criar uma criança. E foi preciso que a aldeia se reunisse e se mobilizasse para que os direitos das crianças e adolescentes estivessem garantidos na Constituição Federal de 1988. E, também, para que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) fosse aprovado, em 1990.

O ECA completou 31 anos e temos muito a celebrar porque este é um marco na defesa dos direitos fundamentais dessa população. Além de ser um importante exemplo a ser seguido nacional e internacionalmente. Ele regulamenta os direitos de crianças e adolescentes conquistados na Constituição e, nessas três últimas décadas, pudemos observar muitos avanços. Os indicadores que refletem a garantia e qualidade de vida, como mortalidade infantil, desnutrição, trabalho infantil e acesso à educação, melhoraram bastante.

Temos um longo caminho a trilhar para garantir que esses direitos sejam efetivados.

E, especialmente com a pandemia, vimos a piora de muitos desses marcadores. Além disso, apenas no Brasil, já perdemos mais de 500 mil vidas. Entre elas mães, pais, tios, avós, amigos, professoras e as próprias crianças e adolescentes. É um luto coletivo. Como cuidar de crianças e adolescentes e garantir direitos fundamentais enquanto a aldeia padece? Também é preciso cuidar daqueles que cuidam.

Foto de Juliana Lessa olhando para a câmera
Juliana Schumacker Lessa. Foto: arquivo pessoal

E, para isso, é preciso vacina no braço, comida no prato, o fim do Teto de Gastos Públicos e a garantia de renda básica, como apontam as pesquisadoras do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação na Pequena Infância (NUPEIN/CNPq). Márcia Buss-Simão, doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora no Departamento de Estudos Especializados em Educação, da UFSC; e Juliana Schumacker Lessa, também doutora em Educação pela UFSC e professora colaboradora na Universidade do Estado de Santa Catarina (UESC).

Um olhar para o(s) corpo(s) das crianças em tempos de pandemia

Foto de Márcia Buss-Simão sorrindo para a câmera
Márcia Buss-Simão. Foto: arquivo pessoal

No artigo, “Um olhar para o(s) corpo(s) das crianças em tempos de pandemia”, problematizam como tem  se  dado  a  garantia (ou não) dos direitos de crianças e adolescentes durante a pandemia. Compreendendo  a categoria infância em suas múltiplas determinações: social, política, econômica, histórica e cultural.

Ao Alana, apontaram que a falta de efetividade do Plano Nacional de Imunização agrava as situações de vulnerabilidades das infâncias e adolescências. Alertaram que é preciso que a política do cuidado saia da esfera doméstica e vá para a dimensão política e pública. E que com a vacinação em massa da população, podemos retomar e garantir as condições básicas de existência das famílias e dos contextos de saúde e educação.

Confira:

Como a pandemia tem afetado crianças e adolescentes, considerando que eles não são as principais vítimas fatais de covid?

Márcia Buss-Simão: Desde a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, na área da Educação e em todas as áreas das Ciências Sociais, ao estudar a infância trazemos um olhar e uma perspectiva da sociedade e do mundo adulto, que se encontrava pouco explícito ou até ausente.

No momento atual, em contexto de pandemia, nós também precisamos, mais do que nunca, olhar para as crianças e a infância, pois a partir desse direcionamento do olhar poderemos, inclusive, trazer à luz alguns aspectos dessa pandemia que não estão sendo percebidos.

Assim, a gente encontra como a pandemia tem afetado as crianças apesar de elas não serem as principais vítimas fatais da covid. Uma delas é a morte das próprias crianças resultantes do vírus, que estão sendo ignoradas. As crianças ficaram órfãs com essas mais de 500 mil mortes de brasileiros e brasileiras. Também, elas perderam a possibilidade de educação em creches, pré-escolas e escolas. E por mortes indiretas, pois elas são afetadas pelo pouco investimento em saúde, em políticas intersetoriais. E, por fim, porque famílias perderam condições de subsistência, acarretando, inclusive, a fome e a insegurança alimentar. 

Com relação ao primeiro ponto, é claro que se as crianças forem comparadas com a quantidade de mortes em geral, o número de crianças é pequeno, mas há uma invisibilidade total da morte de crianças e bebês na pandemia.

Outro ponto é que 45 mil crianças ficaram órfãs no ano de 2020, isso é importante de lembrarmos porque é uma questão que fica totalmente invisibilizada, não há uma preocupação social ou políticas públicas sobre isso. Quem se responsabiliza por esses órfãos da pandemia?

E as crianças perdem as possibilidades de educação em creches, pré-escolas e escolas, que é uma grande implicação do isolamento e do distanciamento social. Há o impedimento dos encontros, das relações sociais, do encontro diário com seus pares, e agora tem sua vida e o convívio restritos ao espaço de casa, muitas vezes só com pessoas adultas. 

Juliana Schumacker Lessa: sobre as mortes indiretas de crianças e adolescentes afetadas pela pandemia, que tem a ver com essa questão das condições materiais que as famílias, os cuidadores e os responsáveis pelas crianças precisam ter para poder garantir os direitos das crianças e adolescentes. Em 2020, no início da pandemia, quando escrevemos o artigo, fomos interpeladas pela pergunta: quais crianças têm assegurado o direito, no contexto de uma crise sanitária mundial, de proteger aquilo que é mais essencial, a própria vida?

No caso das crianças, sobretudo as mais pequenas, pela sua interdependência inerente ao adulto que lhe cuida, ela é completamente dependente e para garantir a sua vida elas precisam dos adultos. Isso significa considerar as condições materiais que as famílias têm resguardadas para permanecerem em suas casas, sem que isso afete o acesso aos seus direitos sociais. O que vimos é que a pandemia impôs o dilema às periferias: sair para trabalhar (quando a ciência diz para ficarmos protegidas/os em casa) e garantir a comida; ou, ficar protegida em casa, mas sem comida para si e suas crianças?

Quando a gente se defronta com as desigualdades sociais profundas que a pandemia desmascara, não podemos deixar de ver, junto disso, as crianças, reforçando essas desigualdades. Este dilema não é um fato isolado e nem uma questão de escolha individual, mas expõe a omissão do poder executivo em ações de políticas públicas, voltadas para a infância, para proteger os direitos de crianças e adolescentes, em nome de favorecimentos econômicos que beneficiam grandes empregadores, em detrimento da classe trabalhadora.

No artigo, tomamos dois fatos da realidade para mostrar como as crianças são impactadas na pandemia, sobretudo no que diz respeito a duas grandes questões: os impactos do isolamento social sobre os corpos das crianças; e os efeitos do distanciamento social para as crianças, em suas dinâmicas de interações, as necessidades que as crianças têm para se constituir colocadas nas interações e o quanto isso impacta quando as ações estão impossibilitadas. Na 1ª seção, abordamos a fatalidade que tomou de assalto a vida de Miguel, de 5 anos, filho de uma mulher trabalhadora doméstica e pai agricultor, na cidade de Recife (PE), em plena pandemia, escancara o privilégio de viver pelo seu caráter classista.

Miguel teve que ir trabalhar com sua mãe, que não teve o direito e as condições garantidas para permanecer em casa e fazer o isolamento social. Em consequência da interrupção do atendimento presencial na educação infantil, por conta de uma crise sanitária mundial, Miguel foi ao trabalho com sua mãe, no momento em que todas as recomendações de saúde reforçavam a necessidade de permanecermos em casa.

O isolamento social acentuou as desigualdades históricas e estruturais presentes em nossa sociedade, retratando como a ausência de políticas públicas, incluindo aquelas de combate à pandemia, atua na produção da morte social do corpo biológico.

Este exemplo mostra como o trabalho “essencial” da mãe de Miguel, a fragilidade de suas condições de trabalho o afeta diretamente na garantia de seus direitos, ou seja, na sua constituição como sujeito de direitos – que é o que o ECA vem a promulgar. Podemos dizer que a pandemia vem afetando tantas outras crianças também, na negação daquilo que é próprio dos modos de ser das crianças: sua dimensão corporal, assim como afetou de forma mais drástica, Miguel. 

E, para fechar essa questão, a gente fala do quarto ponto que é sobre a fome: como a pandemia afeta pela fome e pela insegurança alimentar. Ainda que não sejam as principais vítimas fatais de Covid-19, a pandemia também afeta a dimensão dos direitos à proteção e à provisão da vida das crianças e adolescentes, incluindo a provisão de comida no prato. A gente pode citar um segundo fato discutido no artigo, a partir da matéria “A pandemia e a fome”, transmitida pelo podcast Café da Manhã, em um momento mais tenso da pandemia. O caso do filho mais novo de Márcio, pai de outros 5 filhos, pedreiro.

A família mora na periferia do extremo sul da cidade de São Paulo (SP), em um cenário onde características de cidade e de interior se misturam a uma pobreza extrema, territórios abandonados e totalmente invisíveis para o Estado. Márcio relata que foi um grande choque para seu filho mais novo, que frequenta a creche, e que tinha, até então, cinco refeições balanceadas e orgânicas garantidas diariamente e, agora passou, não apenas o menino mais novo, como toda sua família, a ter uma alimentação restrita.

O pai das crianças narra para o repórter o que ouve delas: “pai eu quero danone, pai eu quero uma maçã” e o pai fala “olha, meu filho, isso você só tem lá na creche, não tem aqui não”, como se fosse uma outra realidade. Isso nos mostra como, com a interrupção do atendimento da creche, Márcio e seus filhos viram a chegada da fome em casa. Isso revela, também, a essência da creche como um espaço de provisão, cuja função sociopolítica é a garantia das “condições e recursos para que as crianças usufruam seus direitos civis, humanos e sociais”, conforme o Artigo 7º da Resolução  que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação infantil.

Esse ano, o ECA completa 31 anos. E são três décadas de muitos avanços, os indicadores refletem a garantia e qualidade de vida, como redução da mortalidade infantil, da desnutrição, do trabalho infantil, o aumento do acesso à educação. Mas durante a pandemia nós vimos que muitos desses indicadores sofreram quedas.  Vocês podem fazer um panorama de como estaria a situação se não tivéssemos leis tão importantes na defesa dos direitos de crianças e adolescentes?

M.B-S: No artigo nós também retomamos o ECA e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças para resgatar a importância que esses marcos legais tiveram na produção científica sobre a infância, em diferentes áreas do conhecimento. São “sujeitos de direitos” na “letra da lei”, nas pesquisas, nas formações de professoras e nas orientações e diretrizes curriculares, mas que, no entanto, se tornam letra morta, ao não orientar as políticas públicas para a universalização dos direitos sociais das crianças e, no contexto da pandemia, do direito essencial, à vida. 

J.S.L: Fazer um panorama da situação, se a gente não tivesse o ECA, leva a gente a imaginar muitos cenários, mas ficamos com o que a pandemia nos deu: um cenário, por exemplo, sem acesso à educação. A interrupção do atendimento presencial na educação infantil e escolas permite que a gente vislumbre a situação em que estaríamos se não tivéssemos leis tão importantes na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, como o direito à saúde pública, à assistência social… A pandemia desmascara, traz à tona, isso, basta olharmos para os impactos da interrupção do atendimento educacional:

vemos que sem creche, pré-escolas e escolas o que se apresenta, pra começo de conversa, é um cenário de insegurança alimentar, de fome, e aumento da pobreza nas famílias das crianças moradoras das periferias e, para as crianças e adolescentes particularmente, essa impossibilidade de frequentar a educação formal diariamente tem se revelado, na pandemia, um cenário de total perda do resguardo do direito ao brincar, à proteção, à provisão de suas necessidades, ficando estes restritos apenas às condições individuais de cada família, dentro de uma sociedade com profundas desigualdades sociais, em se falando de acesso a direitos sociais. 

Os casos trazidos no artigo, de Miguel e dos filhos de Márcio, mostram que ficar em casa, fazer o isolamento social, desde o início da pandemia, se colocou como uma condição que as famílias não tiveram como manter, vendo-se em situações piores do que já estavam.

Nas periferias, a disseminação da fome já existia antes da chegada do vírus, com o isolamento social, o fechamento das creches e pré-escolas foi um dos primeiros e maiores impactos nessa realidade, revelando como esses espaços (creches, pré-escolas e escolas) se configuram como territórios de proteção e provisão dos corpos das crianças e adolescentes. 

M.B-S: Esta dimensão protetiva e de provisão dos corpos das crianças acentua a função sociopolítica da educação infantil. Para as crianças, a creche faz falta como um tempo e um espaço de vivência plena da infância de direitos, de encontro com outras crianças, com o brincar, com espaços projetados para acolhê-las e para alimentar o corpo não apenas biológico, mas social, cultural e histórico. 

J.S.L: Por outro lado, compreender os contextos de creche, pré-escolas e escolas como territórios de proteção e provisão dos corpos das crianças, passa por uma concepção política intersetorial. Em artigo que escrevemos juntas (no prelo), que está para ser publicado, nós dizemos:

essa política do cuidado se encontra ora na esfera da assistência, ora na da educação, colocando aí a necessidade de pensarmos no cuidado enquanto política intersetorial, ou seja, que necessita ser entendido em suas múltiplas facetas: cuidado à saúde, educação e a assistência que, no caso da criança pequena, é transversal a toda e qualquer forma de interação em que estejam envolvidas.
Tanto a Constituição de 1988, no artigo 227, quanto o próprio ECA determinam a prioridade absoluta de crianças e adolescentes. É possível garantir essa prioridade enquanto a comunidade que os cerca padece? Temos aquele ditado de que para criar uma criança é preciso uma aldeia. E aí, como a gente faz sem a aldeia?

M.B-S: Essa pergunta é muito importante. Vale lembrar e relembrar o que está na “letra da lei” de nossa Constituição que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Como as crianças terão prioridade absoluta sem que esses direitos estejam garantidos?

J.S.L: Respondendo de uma maneira um pouco mais enfática, se é possível garantir prioridade enquanto a aldeia padece: não, não é possível. A gente toma o próprio fato que analisamos da mãe de Miguel, a dona Mirtes, que precisou sair para trabalhar. As famílias precisam ter as condições, outros direitos precisam estar garantidos, para assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes que passam, por exemplo, pelos direitos das mulheres, pelos direitos das pessoas com deficiência, pelos direitos das populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, pelos direitos das pessoas idosas e por aí em diante.

Não podemos garantir os direitos de crianças e adolescentes sem que os direitos estejam universalizados.

Neste artigo que será publicado, discutimos sobre uma especificidade dessas condições materiais das famílias. Como você falou, para criar uma criança é preciso uma aldeia e eu achei que você fosse citar aquela máxima também “quem cuida do cuidador?”. Nesse artigo, nós discutimos sobre a dimensão pública do cuidado, discussão essa que obrigatoriamente passa pela defesa por garantia das condições materiais e concretas de acesso igualitário a essas políticas, levando em conta as singularidades de cuidado que os grupos sociais distintos demandam (crianças, jovens, pessoas idosas, aquelas com necessidades específicas, populações negras, de mulheres, imigrantes, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, para citar alguns exemplos). No contexto, por exemplo, de bebês e crianças pequenas, na Educação Infantil, essas questões se intensificam, pois o cuidado não está apenas presente na esfera doméstica, como também, na pública.

É preciso retirar o cuidado da esfera doméstica, reforçando a importância do cuidado, da dimensão corporal e das práticas de alimentação que residem tanto na sua inevitabilidade – é inevitável cuidar do corpo de uma criança, atender suas necessidades fisiológicas e de alimentação – como na sua dimensão política, por constituir o “cuidar do outro” em um sistema de produção material e simbólico em que se produzem os modos de viver a infância.

Só será possível garantir a prioridade absoluta quando o cuidado (que os distintos grupos sociais distintos demandam), particularmente o cuidado de bebês, crianças bem pequenas, crianças maiores e adolescentes for concebido em sua dimensão pública.
Quais medidas vocês acreditam que sejam necessárias para assegurar que nenhum direito de crianças e adolescentes seja violado durante a pandemia?

J.S.L: Sendo objetivas: renda básica, revogação da Emenda Constitucional 95, vacina no braço e comida no prato. Sobre a renda básica, a Márcia tem um ótimo exemplo da nossa Rede Municipal de Florianópolis, que nos ajuda a discutir um pouco as medidas necessárias e os dilemas que enfrentamos com relação à ausência de renda básica.

M.B-S: Aqui na Rede Municipal de Florianópolis, o que nós temos visto é que, nesse momento em que as crianças estavam em casa com as famílias, havia, para algumas delas, a garantia da cesta básica. Semana passada eu tive esse relato de uma de uma diretora de creche mencionando que várias famílias, para garantir a continuidade da cesta básica, elas têm optado por permanecer com direito a cesta básica.

J.S.L: E eu acho que esse dilema que a Márcia coloca, levar para creche ou ficar com a cesta, a medida necessária que a gente observa é a renda básica como o primeiro elemento, até para a gente poder pensar enquanto medida necessária para não viver esses dilemas nefastos, tanto o dilema de sair para trabalhar – como no artigo que a gente escreveu lá no olho do furacão, no meio da onda da pandemia  –  ou garantir a comida. Então, além da renda básica, a revogação da Emenda Constitucional 95, a vacina para todo mundo e a comida no prato.

Sobre um dos pontos que vocês trouxeram, a vacina no braço, de que forma a falta de efetividade do Plano Nacional de Imunização provoca o agravamento das situações de vulnerabilidades de crianças e adolescentes, suas famílias e cuidadores, implicando na violação de seus direitos fundamentais? 

M.B-S: A falta de efetividade do Plano Nacional de Imunização agrava as situações de vulnerabilidades de crianças e adolescentes de duas formas: estendendo e prolongando a pandemia e o contexto de desigualdades sociais; com esse prolongamento e ampliação da pandemia se agravam e intensificam o contexto desigualdades sociais, ou seja, se tornam mais acentuadas, mais intensas. É quase um ciclo vicioso. Nesse contexto de prolongamento e ampliação do tempo de pandemia, aquelas formas como a pandemia tem afetado crianças e adolescentes, que enumeramos na primeira questão, se estendem, se acentuam e se agravam também.

J.S.L: A medida em que não garantimos as condições básicas de vida das famílias, continuaremos violando seus direitos fundamentais, a começar pela proteção e provisão.

Enquanto a imunização não se completa, não podemos vislumbrar um retorno seguro e por completo da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e de outras etapas educativas.
A imunização da população, mesmo que crianças e adolescentes não sejam imunizados, é capaz de garantir seus direitos?

J.S.L: A imunização da população permite a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Adultos imunizados, usando máscaras, visam garantir os direitos de crianças e adolescentes à proteção e à provisão.

M. B-S: E, também, com a vacinação em massa da população, podemos retomar e garantir as condições básicas de existência das famílias e dos contextos de saúde e educação.