Peças publicitárias veiculadas pela Taurus, fabricante de armas e munições, desrespeita o dever compartilhado de proteger crianças contra qualquer forma de violência
A exposição de crianças a armas apresenta uma série de riscos à sua vida e ao seu desenvolvimento integral, com consequências negativas que vão desde a naturalização do uso desse tipo de produto a ameaças à segurança e à saúde de meninos e meninas.
A cada 60 minutos uma criança ou adolescente morre no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo, revela um estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria. Segundo a análise, a cada duas horas, em média, uma criança ou adolescente dá entrada em um hospital da rede pública de saúde com ferimento por disparo de algum tipo de arma.
“Crianças devem ser protegidas contra qualquer forma de violência. A Constituição Federal assegura que elas devem ter seus direitos garantidos e efetivados com prioridade absoluta e atribui responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade, inclusive empresas, para a salvaguarda desses direitos”, afirma Ana Claudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana.
À vista disso, o Instituto Alana elaborou um parecer em apoio à argumentação de uma ação civil pública proposta pela Comissão Arns, IDEC e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que questiona uma campanha publicitária da Taurus, fabricante brasileira de armas de fogo.
O patrocínio de anúncios em redes sociais e no site da fabricante para a ampliação de vendas de armas e munições, produtos de comercialização restrita, é considerado propaganda ilegal e abusiva, compromentendo o dever de garantia de cuidado e proteção, com prioridade absoluta, no que diz respeito aos direitos de crianças e adolescentes.
Isso porque vídeos e fotos desse caráter são totalmente inadequados para figurarem em perfil aberto em redes sociais que podem ser acessadas por crianças a partir de 13 anos (conforme termos de uso de redes sociais), sendo, portanto, publicações violadoras de direitos.
Vale lembrar que, ainda que os termos de uso de redes como TikTok, Instagram e Facebook vedem a utilização da plataforma por pessoas com menos de 13 anos, elas são largamente utilizadas pelo público infantil.
Atualmente, grande parte das crianças e dos adolescentes estão no ambiente digital. Em 2017, 1 a cada 3 usuários na internet era uma criança, segundo dados do UNICEF. Em termos comparativos, os jovens são a parcela da população mais conectada, e, por vezes, estão nesses ambientes distantes do acompanhamento e moderação de seus pais, mães ou responsáveis, ou seja, é essencial protegê-los de uma exposição prejudicial ao utilizarem essas tecnologias.
Ao navegarem em espaços digitais que não são apropriados para suas idades, crianças, em especial, podem correr riscos diversos. Para além daqueles que costumamos instantaneamente pensar, como contatos maliciosos, discurso de ódio, formas de praticar suicídio ou automutilação, pornografia, uso de drogas e violência, também há outros tão danosos quanto esses mencionados, mas menos debatidos, como o acesso a conteúdos comerciais inadequados para suas idades, caso em que enquadram-se os armamentos e munições.
61% das crianças e adolescentes de 11 a 17 anos relataram já ter tido contato com publicidade nas redes sociais, aponta a pesquisa TIC Kids Online de 2021.
“Por isso, é imprescindível discutir como a publicidade digital de armas e munições afeta, além dos usuários adultos, as crianças e adolescentes que comprovadamente também estão nas redes sociais, sites e plataformas digitais e cujos direitos devem ser respeitados com prioridade absoluta”, afirma Ana Cifali.
As publicações veiculadas pela empresa são expressamente proibidas pelo Estatuto do Desarmamento, que prevê o veto da veiculação de propaganda que promova o uso indiscriminado de armas de fogo.
Além disso, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) prevê a proteção de crianças de toda a comunicação, mercadológica ou não, que promova o uso de armas de fogo, ao estabelecer, em seu artigo 79, que todas as “revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.”
Mais amplamente, o ECA garante também a proteção da criança contra qualquer forma de violência (art. 5º), bem como a efetivação plena de seu direito à educação (art. 4º) e à vivência de condições plenas para seu desenvolvimento (art. 3º).
A ampla dispersão de armas de fogo e munições na sociedade brasileira também provoca efeitos irreparáveis no direito de convivência familiar de crianças e adolescentes. Para além da mortalidade desse público, o armamento da população amplia a mortalidade geral, sendo inegável que terá como efeito a morte de pessoas que são mães, pais e cuidadores, o que, consequentemente, eleva os índices de orfandade e acolhimento institucional ou separação entre pais e filhos, sejam as vítimas civis ou policiais.
Ainda, impede que crianças possam usufruir de forma mais livre da convivência comunitária e social, de ir e vir e de brincar em espaços públicos e escolares impactados por uma guerra deflagrada por tiros e balas em muitas comunidades brasileiras.
Enquanto empresa brasileira, a Taurus compartilha do dever de proteger as crianças de qualquer forma de violência, inclusive aquela incitada pelas armas.
“Aqui também está em jogo o direito basilar do ser humano: a vida. O homicídio é a principal causa de mortalidade juvenil, responsável pela parcela de 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos. Em números absolutos, o Brasil é o país do mundo, sem guerras declaradas, que mais vitima pessoas de até 19 anos em homicídios”, finaliza Ana Cifali.