24/10/2022
“Eu fiz um pato joinha que faz as pessoas ficarem felizes… algumas pessoas toda hora fica triste… coisas… ruim… lembra de coisa ruim… [sic] eu toda hora lembro de uma coisa ruim… uma coisa triste… aí o pato joinha deixa as pessoas felizes”.
– Menino de Brasília, de 5 anos.
Outra parte do público infantil acredita que o problema é de natureza estrutural, que se propaga em rede e reverbera no conjunto da vida, pois tudo está interligado. Um menino de 7 anos de São Paulo, por exemplo, fez um desenho em que um monstro contamina raízes. “(…) Ele mata pegando você pela raiz e te enforcando pela raiz… eu tô com a espada na mão lutando com o monstro que começou a contagiação… [sic] e também dá pra contagiar qualquer coisa, tipo essa lua aí… virou monstro também… ele está contaminando tudo… como essa lua que também tá virando mutante… nascendo um tentáculo dela”.
Ainda, há crianças que imaginam artifícios para se proteger das catástrofes da crise climática, como as construções de abrigos, a exemplo das arcas de Noé. Em São Paulo, três crianças construíram uma torre, uma espécie de arca, que abriga possibilidades de sobrevivência, inclusive “sementes do futuro” para a continuidade da vida na Terra.
Percepções como essas fazem parte de uma pesquisa de escuta de crianças sobre o meio ambiente e as mudanças climáticas realizada pelo Instituto Alana, por meio de Ana Cláudia Leite e Gandhy Piorski, com o apoio da Fundação Bernard Van Leer. As escutas também abrangeram temas acerca da cidade, em especial sobre sua relação com o brincar ao ar livre e a mobilidade.
Entre 2018 e 2020, os pesquisadores realizaram oficinas de escuta com meninos e meninas com e sem deficiência, de 4 a 12 anos, e de diferentes condições socioeconômicas, étnicas e raciais, feitas em cinco cidades brasileiras, de todas as regiões do país: Porto Alegre (RS), São Paulo (SP), Brasília (DF), Recife (PE) e Boa Vista (RR).
“Buscamos criar um método de escuta sensível que parte das linguagens e expressões das crianças e busca alcançar o que elas têm de mais profundo e inspirador para o mundo: sua imaginação. Assim, como adultos, temos a oportunidade de perceber as infâncias e os temas propostos a partir de outra perspectiva”, ressalta Ana Cláudia Leite, assessora de infância e educação do Instituto Alana.
O resultado desses encontros é apresentado em dois sumários executivos, “Por um método de escuta sensível das crianças“, que apresenta a metodologia autoral construída pelos pesquisadores a partir de uma concepção de escuta que privilegia as múltiplas linguagens e o imaginário das crianças, e “Escuta de crianças sobre a natureza e as mudanças climáticas“, cujo conteúdo traz as produções e narrativas das crianças que dialogam com a questão ambiental, como as mudanças climáticas e a poluição.
Das oficinas de escuta, os pesquisadores criaram um acervo composto de produções de crianças com diversos materiais, áudios, fotos, vídeos e registros de bordo, bem como um relatório técnico no qual há a análise interpretativa dos temas abordados na pesquisa. Ao todo, são cerca de 150 desenhos, 95 objetos, 80 produções em massa de modelar e 70 horas de áudio e vídeo.
Sobre o tema natureza e mudanças climáticas, os pesquisadores classificaram as produções das crianças em quatro eixos temáticos: “teia da vida” (que expressam uma relação de interdependência nos acontecimentos sobre o meio ambiente e de conexão entre os fatos), “retorno ao primitivo” (que exprimem uma ideia de retorno aos estágios primitivos da civilização, como as destruições em massa), “drama geológico” (a ideia de que as ameaças e transformações viriam não dos seres humanos, mas sim do planeta e sua reorganização geológica, ou até do sistema solar e do cosmos) e “drama ético” (que diz respeito à responsabilidade dos seres humanos nas consequências negativas e positivas em relação ao meio ambiente).
“Esses assuntos são tratados com profundidade pelas crianças. Expressando-se por meio de modelagens, desenhos e objetos, elas evidenciam por meio da sua força imaginária a urgência de se encontrar soluções sistêmicas para problemas ambientais complexos e graves. Em suas produções, a natureza aparece como fonte de vida, beleza, integração e desenvolvimento e, ao mesmo tempo, as crianças demonstram ter receio com os problemas ambientais, que já são sentidos por elas”, ressalta Gandhy Piorsky, coordenador da metodologia da pesquisa.
A participação é um direito de crianças e adolescentes, conforme evidencia o artigo 12 da Convenção dos Direitos das Crianças, que se efetiva à medida que as especificidades da infância, e em relação à idade e às suas condições cognitivas e emocionais, são asseguradas. Mesmo em assuntos de alta complexidade, como as mudanças climáticas, as crianças podem e devem ser consideradas, uma vez que são temas que lhe dizem respeito, impactam sua vida e a das futuras gerações. No entanto, é preciso cuidado para que, em nome do direito à participação, não se conduza iniciativas que se baseiam em concepções, narrativas e atividades que são próprias do mundo do adulto, mas inadequadas à condição peculiar de desenvolvimento das crianças.
Para Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos da Infância do Instituto Alana, crianças precisam ser consideradas não apenas por serem sujeitos de direitos, mas porque a humanidade ganha ao escutar as novas gerações. “A infância tem uma perspectiva e contribuição singular aos desafios individuais e coletivos. Essa escuta é fundamental pois é necessário engajar diversos atores para a mobilização urgente em prol das questões climáticas e fortalecer a incidência da pauta nas mídias e em ações junto a lideranças políticas e a governos locais”, ressalta.
Baixe os sumários executivos: